O CONCEITO DE SAÚDE E DOENÇA NA TEORIA WINNICOTTIANA
Maíra Golovaty Lederman
RESUMO
Para Winnicott, a saúde é um estado complexo, que deve ser pensado em si mesmo, com suas dificuldades e descontinuidades através do amadurecimento pessoal. Há uma grande margem de variação individual inerente aos conceitos de saúde, mas que sempre se relacionam estreitamente com os critérios de maturidade da psique em relação à idade cronológica, integridade psicossomática, criatividade e espontaneidade. Contrariamente, a palavra saúde não é sinônimo da palavra fácil, já que a tarefa de viver é difícil em si mesma, e a submissão é uma base doentia para a vida. Do mesmo modo, não se pode tomar a saúde pela ausência de sintomas, já que em muitas situações é mais saudável ficar doente do que se mostrar invulnerável. Winnicott alerta para a diferença entre saúde e o que ele denominou “fuga para sanidade”. Segundo ele, embora possa parecer paradoxal, a saúde é tolerante com a doença. Pelo estudo da teoria do amadurecimento pessoal, percebe-se que muitas vezes é necessário que se tenha algum grau de saúde inclusive para se permitir adoecer, já que o adoecer significa também se permitir regressar ao ponto da linha do amadurecimento no qual ocorreu o trauma, e portanto onde se localiza a etiologia da doença, e desta maneira é possibilitada uma retomada do processo de amadurecimento que se aproxime mais da saúde. Em resumo, não há nenhum aspecto, saudável ou doente, da existência humana que pode ser tomado independente do processo de amadurecimento do indivíduo.
O presente trabalho tem por objetivo dar um panorama da Teoria do Amadurecimento de D.W. Winnicott e localizar nesta o conceito de saúde/doença.
Palavras-Chave: Amadurecimento, saúde, doença,
O CONCEITO DE SAÚDE E DOENÇA NA TEORIA WINNICOTTIANA
A teoria do Amadurecimento é a espinha dorsal do trabalho teórico e clínico de D.W. Winnicott, e é através dela que proponho aqui compreender os conceitos de saúde e doença psíquicas para este autor.
Um grande diferencial desta teoria é ela se caracterizar por uma “teoria da saúde”, ou seja, buscar elucidar de que maneira se dá e quais são as bases para que transcorra o desenvolvimento saudável de um indivíduo, para então poder compreender a etiologia dos distúrbios psíquicos, como resultante das falhas deste processo de amadurecimento. Por esta razão, a teoria do amadurecimento abre grandes possibilidades para um trabalho preventivo, a partir do momento em que concebe diretrizes que caracterizariam o ambiente suficientemente bom para que a saúde possa se instalar de maneira satisfatória.
“ Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las” (Winnicott 1983c/1965vc, p.65).
A teorização de D.W. Winnicott está calcada na idéia de que todo ser humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento; ou seja, uma tendência a integrar as experiências vividas como parte de si e que, se tudo correr bem, acarretará na integração numa unidade, permitindo que o indivíduo possa viver as experiências como reais e tendo um sentido pessoal.
“ É somente sobre uma continuidade no existir que o sentido do self, de se sentir real, de ser, pode finalmente vir a se estabelecer como uma característica da personalidade do indivíduo” (Winnicott, W14/1986b, pág. 5)
Esta tendência ao amadurecimento, adverte-nos Winnicott, apesar de ser inata, não ocorre automaticamente no decorrer do tempo. Antes, necessita de um ambiente facilitador que possa prover os cuidados suficientemente bons para que esta tendência se concretize. À sustentação que este ambiente deve dar para promover as condições necessárias que permitam o processo de amadurecimento Winnicott denominou o termo em inglês holding, que diz respeito ao suporte, aos cuidados de natureza emocional e física, e que só pode ocorrer de maneira satisfatória quando há uma identificação genuína da mãe com seu bebê. Esta condição tão especial, em que a mãe regride para poder se identificar com seu bebê foi chamada por Winnicott de “preocupação materna primária”, um estado de identificação tão intenso que, se não fizesse parte deste momento vivencial específico, poderia ser considerado patológico. A mãe que se encontra em preocupação materna primária é capaz de perceber comunicações muito sutis de seu bebê que indicam necessidades específicas e importantes de serem compreendidas neste período tão primitivo e tão frágil da vida. Winnicott nos adverte que este “saber” da mãe não é algo que se adquiri de maneira intelectualizada, e por essa mesma razão não é passível de ser ensinado por nenhum meio, a não ser por meio da própria experiência.
No entanto, é muito importante que os profissionais que lidam com mães e bebês saibam reconhecer o valor deste saber, para que no mínimo não atrapalhem essa comunicação, e na melhor das hipóteses possam dar o suporte para que a mãe se sinta mais segura e confiante do seu saber. Saber este que remete às suas próprias origens, e inevitavelmente à maneira como foi cuidada quando bebê. A mãe que teve os cuidados suficientes quando bebê apresentará uma maior facilidade em cuidar e se identificar com seu próprio bebê, do mesmo modo que aquela mãe que não teve estes cuidados de forma satisfatória tenderá a repetir o mesmo padrão, podendo apresentar dificuldades similares pelas quais ela mesma passou.
Neste sentido, a questão da transgeracionalidade dos distúrbios psíquicos, que muitos atribuem à questão hereditária, pode aqui ser compreendida como um padrão dos cuidados insuficientes da mãe que se repete ao cuidar do próprio bebê.
“Embora reconheçamos o fator hereditário na esquizofrenia e estejamos dispostos a constatar as contribuições efetuadas, em casos individuais, por distúrbios físicos, vemos com suspeita qualquer teoria da esquizofrenia que divorcie o sujeito dos problemas do viver usual e das proposições universais do desenvolvimento individual em determinado meio ambiente”. (Winnicott, w10/ 1971a, pág. 97).
A teoria do amadurecimento reconhece a importância vital da provisão ambiental, especialmente no início da vida humana, realizando um estudo especial do ambiente propício em termos de crescimento humano, na medida em que a dependência tem seu significado específico em cada uma das etapas do amadurecimento.
Explicitando cada uma das etapas, com suas dificuldades e tarefas inerentes pelas quais um indivíduo saudável deve passar, enfatiza as conquistas a serem feitas para se tornar um adulto saudável, conquistas estas que quando não são alcançadas, ou são alcançadas de forma precária, pode acarretar em sérios distúrbios, localizados como doença.
Esta “linha do amadurecimento” hipotetizada por Winnicott remete à “continuidade de ser”, ressaltando que o ser humano, surgindo do não-ser, da não-integração, se desdobra temporalmente nas diversas fases do amadurecimento: infância, adolescência, juventude, vida adulta, velhice até a morte, que para Winnicott constitui a marca derradeira da saúde e a volta ao estado de não ser. O morrer aqui tem um sentido diferenciado, pois não se trata apenas da morte orgânica; a morte é tida como uma conquista que só pode ser alcançada pelos indivíduos que caminharam relativamente bem no seu processo de amadurecimento, e conquistaram o sentimento de existir e a integração do si-mesmo (self). Apesar de parecer óbvio, é importante lembrar que só poderá morrer quem de fato viveu, e só vive quem consegue alcançar a integração de um eu e pode sentir a vida como sua, tendo um sentido pessoal e real.
Para tanto, é necessário que o indivíduo se saia razoavelmente bem nas conquistas das aquisições que cada fase do amadurecimento instaura. E cada uma das fases do amadurecimento é descrita por Winnicott com uma linguagem específica, obedecendo a alteração e complexidade das necessidades e das conquistas adquiridas pelo indivíduo, podendo-se dividir a Teoria do Amadurecimento pessoal em 4 grandes fases ou estágios: Dependência Absoluta, Dependência Relativa, Rumo à Independência e Independência Relativa. Apesar deste processo não ser linear, algumas conquistas têm pré-requisitos e só podem ser alcançadas com base na conquista de outras. E mesmo quando alcançadas, estas conquistas não têm garantia eterna, ou seja, podem ser perdidas pelas contingências da vida. Mas ainda assim, é muito diferente perder uma conquista de nunca tê-la alcançado. Pode-se dizer ainda que os alicerces para a conquista da saúde estão calcados primordialmente nas fases de dependência absoluta e relativa, nas quais os traumas repercutem de maneira bastante nociva e por vezes irremediável.
A primeira fase, denominada Dependência Absoluta, pode ser parcialmente compreendida pelo próprio nome que a denomina: a dependência absoluta do bebê com relação ao ambiente no qual vive, mais especificamente, a mãe. Em algum momento já na vida intra-uterina ocorre o que Winnicott chamou de “grande despertar”, que acarretará na experiência do nascimento. A experiência do nascimento é extremamente importante e pode causar sérias conseqüências quando apresenta problemas. No entanto, Winnicott chama a atenção para o fato de que a experiência do nascimento não é em si um evento traumático.
Faz-se importante neste ponto ressaltar o sentido inovador que o termo “trauma” adquiri na teoria winnicottiana, já que diverge bastante do sentido usual na psicanálise tradicional. O que caracteriza trauma neste contexto é o congelamento ou a ruptura da continuidade de ser, que pode ser causado tanto por uma intrusão excessiva como pela negligência ao atendimento de necessidades específicas.
Neste caso, o caráter traumático do nascimento pode advir pelo fato de acontecer fora da hora apropriada (prematuramente ou tardiamente), fazendo com que o bebê tenha que reagir ao invés de expressar seu gesto espontâneo, e desta maneira interrompe o seu processo de amadurecimento. Reagir aqui também tem uma outra conotação, significando uma oposição ao ser, quebrando a continuidade de ser, e desta forma desencadeando a organização de defesas. Apesar de a experiência do nascimento ser extremamente importante para o processo de amadurecimento do indivíduo, já que é o “engate” na possibilidade de ser, Winnicott assinala que somente este evento isolado não é determinante para a constituição da saúde, e que dependerá em grande medida do padrão dos cuidados ambientais posteriores, que poderão inclusive restabelecer o bebê de um possível trauma. No entanto, jamais uma experiência (boa ou ruim) é totalmente perdida, marcando em maior ou menor grau a personalidade que irá se constituir.
Como já dissemos, ao nascer, o ser humano é, por essência, extremamente imaturo e vulnerável, caracterizando-se por um estado de dependência absoluta do ambiente no qual vive:
“Se a dependência realmente significa dependência, então a história de um bebê individualmente não pode ser escrita apenas em termos do bebê. Tem de ser escrita também em termos da provisão ambiental que atende a dependência ou que nisso fracassa” (winnicott, W10/ 1971a, pág. 102).
Num primeiro momento, este ambiente é primordialmente a relação entre mãe e bebê (chamada por Winnicott como “dois em um”, já que é impossível pensar na existência de um bebê sozinho), estágio este em que o bebê não sabe de si e muito menos da realidade externa. A mãe é percebida como “objeto subjetivo” pelo bebê, e deve atender às necessidades deste bebê específico de maneira que ele possa experienciar uma “ilusão de onipotência”, que é o sentimento de ter criado aquilo mesmo de que necessita. Esta experiência de onipotência é primordial para que o indivíduo possa, no futuro, manter dentro de si um sentimento de que a vida vale a pena, sentimento de criar e recriar sua própria existência, apesar dos limites muitas vezes áridos impostos pela realidade externa.
Winnicott considera que todo ser humano é dotado de uma criatividade originária, ou seja, um impulso de buscar algo em algum lugar. Não se trata aqui da criatividade comumente associada às produções artísticas, embora ela possa estar envolvida neste processo quando ele é criativo. Trata-se antes de uma proposição universal, que se relaciona ao estar vivo, à abordagem que o indivíduo consegue fazer da realidade externa.
“O impulso criativo, portanto, é algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – que se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical. Está presente tanto no viver momento a momento de uma criança retardada que frui o respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir, e pensa em termos do material a ser utilizado, de modo que seu impulso criativo possa tomar forma e o mundo seja testemunha dele.” (Winnicott, W10, 1971a, pág. 100)
Para Winnicott, é impossível que o impulso criativo humano seja destruído por completo, mas pode chegar a ser muito prejudicado por fatores ambientais que sufocaram seus processos criativos logo no ingresso da vida, nas primeiras abordagens dos fenômenos externos, já mesmo no nascimento.
Por isso é importante que a expressão da criatividade originária possa acontecer um número suficiente de vezes para que o indivíduo mantenha este sentimento no decorrer de seu amadurecimento pessoal, estabelecendo uma capacidade pessoal para o viver criativo e original que enriqueça a vida com o sentimento de que esta vale a pena ser vivida.
Este aspecto da manutenção da criatividade tem para Winnicott estreita relação com o critério de saúde. O indivíduo tolhido na sua criatividade originária pode, por exemplo, construir um falso-self, empobrecido e desprovido de espontaneidade, como forma defensiva para proteger o self verdadeiro que foi submetido à intrusão ambiental nos primórdios da vida. O resultado é um indivíduo que pode parecer “funcionar” bem, realizando inclusive um trabalho excepcional e levando uma vida aparentemente normal. Este indivíduo, no entanto, não ousa apresentar sintomas, aprendeu a resignar-se, a submeter-se. Mas sua existência está atrelada a uma reprodução de um mundo artificial, que não é seu mas que aprendeu a imitar, e seu sentimento de existência fica empobrecido, carente de espontaneidade e originalidade, permanecendo um sentimento de falta de sentido, de insatisfação existencial que caracteriza um estado doente do ponto de vista do amadurecimento, pois denuncia uma dissociação na personalidade e a necessidade de auxílio para alcançar o status unitário.
Contrariamente, quando o ambiente é suficientemente bom, o bebê pode então realizar importantes conquistas desta primeira etapa de dependência (temporalização, espacialização, alojamento da psique no corpo) e caminhar satisfatoriamente na linha de seu amadurecimento pessoal para um outro estágio, no qual será capaz de se deparar com a realidade compartilhada, denominado de Dependência Relativa. Só então os processos mentais entram em funcionamento, e o bebê vai adquirindo a capacidade de lidar com pequenas desilusões decorrentes das falhas ambientais, desde que sejam graduais e toleráveis. Nesta fase, Winnicott traz um conceito inovador, que é o de um terceiro tipo de realidade além da interna e externa: trata-se da realidade transicional, que se caracteriza exatamente por uma transição na percepção que o bebê tem do ambiente e dos objetos, que de subjetivo passa a ser percebido ao mesmo tempo como interno e externo. Ou seja, ao mesmo tempo que o bebê cria o mundo, ele o encontra. O bebê elege um objeto, chamado objeto transicional, que é para o bebê como se fosse a própria mãe. No entanto não se trata de representação, pois ainda não existe a capacidade de simbolizar. É como se o objeto encarnasse a mãe nos momentos que o bebê necessita, mas ao mesmo tempo existisse também objetivamente, já que tem forma, textura e contorno que são importantes para o bebê.
Os fenômenos transicionais permitem uma aproximação gradual do bebê com a realidade objetivamente percebida, e são extremamente importantes para a conquista de uma vida rica e criativa. Criatividade aqui, como já mencionamos anteriormente, não tem a conotação que adquiri nas manifestações artísticas. Trata-se de um sentir-se capaz de realizar coisas que dizem respeito a um self verdadeiro e que, por isso mesmo, dotam a vida de sentido.
É nessa fase também que o bebê conquista o estágio do EU SOU, integrando-se numa unidade psicossomática, e a partir daí conquista a capacidade de se tornar “concernido” (concerned), ou seja, de perceber o outro e a si próprio como pessoas totais, e de portanto se preocupar com o outro. A conquista da culpa é extremamente importante para o bem estar individual e social, pois permitirá que o indivíduo possa, no futuro, adquirir a capacidade de se preocupar com a sociedade como um todo, de cuida-la e agir eticamente. Quando o bebê se torna capaz de sentir-se culpado, ele conquista também a capacidade para deprimir-se, ao se dar conta da sua destrutividade inerente ao seu ser, e é extremamente importante que, neste momento, o ambiente esteja atento para receber dele seu gesto de reparação pelos seus ataques, para que possa se instalar o ciclo benigno. Quando ocorre uma falha nesse processo, e o bebê não consegue reparar sua destrutividade, pode ocorrer o oposto e a instalação do ciclo maligno, ou seja, de uma depressão patológica decorrente do sentimento de culpa por sua destrutividade inerente ao estar vivo e ao amar. Ou seja, qualquer ato destrutivo é sentido como irreparável, irremediável, e o indivíduo tenderá a deprimir-se com extrema facilidade, dificultando seus relacionamentos e sua possibilidade de ser.
Cada estágio do amadurecimento tem suas tarefas específicas e suas dificuldades também específicas, e desta maneira o ambiente que poderia ser adequado no estágio anterior se torna inevitavelmente inadequado para este novo estágio, exigindo uma nova adaptação ao indivíduo que amadurece. Isto decorre do fato de que, estando o bebê mais maduro, passa a possuir outras necessidades. Winnicott deixa bem claro que o ambiente suficientemente bom é aquele que se adapta às necessidades do indivíduo em cada etapa de seu amadurecimento, não sendo a recíproca verdadeira: se por acaso ocorrer o contrário, ou seja, o indivíduo se adaptando ao ambiente, poderemos ter implicações devastadoras no desenvolvimento deste indivíduo.
Embora a “continuidade de ser” do indivíduo precise ser o tempo todo sustentada pelo ambiente, é primordialmente nos estágios iniciais que esta sustentação é mais delicada, pois é quando se estabelecerão as bases da personalidade e da saúde psíquica do indivíduo. Uma falha ambiental neste estágio muito inicial, anterior à integração do eu numa unidade, pode ocasionar um trauma que, para Winnicott, significa uma ruptura da continuidade de ser, cujas conseqüências podem ser nefastas. É precisamente aí que Winnicott localiza a etiologia dos distúrbios psicóticos, sendo estes o protótipo de doença psíquica.
Winnicott se coloca como tarefa o estudo da natureza humana, e se dá conta dessa inesgotável tarefa, já que a natureza humana “é quase tudo o que possuímos”. (Winnicott, Natureza Humana, pág. 21).
Sendo um médico pediatra com vasta experiência clínica, percebe a deficiência que existe quando se tenta caracterizar a saúde pela ausência de doença, especialmente quando nos referimos ao campo psicológico. No seu entendimento:
“A palavra saúde possui seu próprio significado positivo, fazendo com que a ausência de doenças não seja mais que o ponto de partida para uma vida saudável” (D.W. Winnicott, 1998, pág. 21).
Uma das grandes contribuições de Winnicott foi considerar que, apesar de haver uma tendência inata à integração, a instalação da psique no corpo não é automática, e nos casos mais desfavoráveis pode chegar inclusive a não ocorrer. Podemos observar em muitos pacientes psicóticos os resultados nefastos desta dissociação, na qual os próprios instintos, como a fome ou a dor, são sentidos como advindos de fora e, portanto, como uma ameaça. Esta é uma grande inovação de seu pensamento, já que para todos os outros teóricos da psicanálise esta situação de integração entre psique e soma já é dada como ponto de partida. Neste sentido, é importante considerar a diferenciação fundamental que Winnicott faz entre os conceitos de psique e mente, e alerta que o uso vulgar de “doença mental” é equivocado. Para ele, o soma e a psique podem ser considerados opostos, mas a mente deve ser considerada um caso à parte no funcionamento psicossomático. Ao distinguir entre estas três esferas constituintes do indivíduo, a saber: soma, psique e mente, Winnicott propõe um rompimento entre a naturalidade com que muitas vezes é considerada a relação entre saúde e inteligência. Para ele, não há sentido algum no termo “saúde intelectual”, a não ser o fato do intelecto depender do bom funcionamento cerebral. Desta maneira, o intelecto em si mesmo não pode caracterizar-se doente, mesmo quando explorado por uma psique doente. É bem possível, desta maneira, que uma criança com QI baixo possa apresentar boa saúde física e gozar de um bom desenvolvimento emocional, e em contrapartida, que uma criança com QI elevadíssimo possa estar extremamente doente no que concerne ao seu desenvolvimento emocional. Esta desvinculação é mais importante do que pode aparentar à primeira vista, já que o alto grau de inteligência de um indivíduo emocionalmente doente pode estar camuflando a gravidade da sua condição emocional. Diferentemente do que ocorre com o soma e com a psique, a saúde na esfera intelectual não é vinculada com maturidade. Na saúde, a mente funciona nos limites do tecido cerebral, porque o desenvolvimento emocional do indivíduo é satisfatório, ou seja, é uma decorrência da saúde da existência psicossomática própria do ser humano.
Tanto a saúde do soma como a da psique, para Winnicott, deve ser pensada em termos maturacionais. A saúde do soma deve ser pensada em termos hereditários e congênitos, devendo funcionar de acordo com a faixa etária do indivíduo. E é com a complexidade dessa saúde física que a pediatria mais tradicional se preocupa fundamentalmente. Ocorre que, ainda quando o soma sofre com alguma doença e é prejudicado, é bem possível que, havendo um ambiente que o sustente adequadamente, o indivíduo possa chegar ao máximo da saúde de seu desenvolvimento emocional naquelas circunstâncias. Da mesma maneira, a recíproca é verdadeira: um soma perfeitamente saudável pode adoecer psiquicamente, devido a uma interrupção do processo de amadurecimento pessoal, e este adoecer é tão mais grave quanto mais precocemente se dá, devido à imensa vulnerabilidade da psique imatura. A saúde, para Winnicott, requer então uma correlação adequada entre a maturidade do soma e a maturidade da psique. Ou seja, saudável é o indivíduo ter emocionalmente a idade compatível com seu desenvolvimento físico.
“O desenvolvimento psicossomático é uma aquisição gradual, e tem seu próprio ritmo, e se o termo maturidade pode ser usado como uma referência etária, então maturidade é saúde, e saúde é maturidade. Todo o processo de desenvolvimento tem que ser levado a cabo, qualquer salto ou falha no processo é uma distorção, e um pulo aqui ou um atraso ali deixam uma cicatriz”. (Winnicott, 1998, pág. 47).
As pessoas que sofrem de esquizofrenia possuem em comum um ligação muito frouxa entre sua psique e as funções corpóreas, podendo a psique se ausentar do soma por um período considerável ou mesmo ser projetada para o mundo externo. Em contrapartida, pode-se afirmar que entre as pessoas saudáveis esta parceria psiquê-soma se encontra em harmonia, e o uso do corpo e de suas funções é algo prazeroso.
Referências bibliográficas:
Winnicott, D. W. 1988 (W18): Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990
––– 1971g: “A criatividade e suas origens”, in Winnicott 1971a : O brincar e a realidade (W10).
––– 1986f [1970]: “A cura”, in Winnicott 1986b: Tudo começa em casa (W14).