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A Tendência Anti-Social Sob o Enfoque da
Teoria do Amadurecimento de D.W. Winnicott
Maíra Golovaty Lederman

Resumo

Este trabalho pretende abordar o conceito de tendência anti-social na obra de D.W. Winnicott, à luz da sua teoria do amadurecimento, localizando do ponto de vista desta teoria os tipos de falha ambiental ocorridas na história da criança e o momento do amadurecimento no qual o indivíduo que a sofre se encontra; falha esta que, por ocorrer após a integração do eu, permite que seja percebida pela criança enquanto tal na época em que ocorreu. Winnicott chama esta falha de “falha no topo do êxito”, já que a criança teve provisão ambiental suficientemente boa que a permitiu chegar neste estádio do amadurecimento e então esta provisão cessou, cessando consigo o próprio amadurecimento. A tendência anti-social sempre denuncia uma provisão ambiental mal-ajustada, e, ironicamente, as crianças que padecem desta problemática é que são tidas como mal-ajustadas. Winnicott nos convida a entrar num mundo de minúcias, já que a falha ambiental ocorrida não precisa ser necessariamente grosseira, especialmente com relação a esta patologia, a tendência anti-social. Neste trabalho procurarei mostrar também que esta conceituação completamente original tecida por Winnicott abre grandes possibilidades para se pensar a questão da prevenção da delinqüência e da psicopatia, grau estes mais graves de uma tendência anti-social não tratada adequadamente, quando as defesas se tornaram enrijecidas e a desilusão é completa.

 

Histórico

Até 1939, a experiência profissional de D.W. Winnicott tinha se dado eminentemente na prática clínica em contextos hospitalares e no exercício clínico privado. O assunto da delinqüência havia sido deliberadamente evitado por ele até aquele momento,  por ainda se sentir despreparado teoricamente e pela dificuldade em obter recursos referentes ao cuidado e à manutenção demandados  por estes casos.

Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial,  Winnicott foi nomeado Psiquiatra Consultor do Plano de Evacuação Governamental, e  foi nesse intenso contato com crianças evacuadas que sua teoria e prática clínica tomaram uma nova dimensão, afetando seus conceitos básicos sobre crescimento e desenvolvimento emocionais.

A partir desta experiência, Winnicott pôde detectar a correlação da tendência anti-social com a questão da privação sofrida pela criança a partir de certa idade. Com base nesses conhecimentos ele escreve, juntamente com  Jonh Bowlby e Emanuel Miller, um alerta ao governo sobre os perigos inerentes ao plano de evacuação, especialmente de crianças menores de cinco anos. Nesta época, já havia percebido que uma criança que sofre uma ruptura dessas na continuidade de ser poderia desenvolver uma tendência anti-social, contrariamente ao pensamento da época de que as crianças menores seriam menos suscetíveis à tais mudanças.

muito embora as circunstâncias da guerra fossem anormais, os conhecimentos obtidos desta experiência foram considerados como tendo aplicação geral, já que as crianças que sofrem deprivação e se tornam delinqüentes têm problemas básicos que se manifestam de modos previsíveis, independentemente das circunstâncias nas quais a deprivação se dá.

 

Sobre o termo “tendência anti-social”

Winnicott cunha o termo “tendência anti-social” em preferência ao termo “delinqüência” pela razão de que o primeiro nos permite vislumbrar outras nuances de uma mesma problemática, sendo a delinqüência e a psicopatia apenas os graus mais fortemente estruturados pelo seu desenvolvimento e agravamento.

O conceito de tendência anti-social visa abarcar tanto suas manifestações mais primitivas, observadas em casos brandos que se aproximam inclusive daquilo que designamos normalidade, como a birra extremada de um bebê, a gula, a enurese noturna ou o furto de um objeto sem valor,  até os atos mais graves  estruturados como delinqüência, sendo a psicopatia o estágio mais avançado, quando não existe mais esperança por parte do indivíduo de que a falha ambiental sofrida por ele seja reconhecida e corrigida.

Além disso, o termo facilita a visualização da existência de uma conexão entre a tendência e a esperança, por mais difícil que seja de percebê-la quando o ato anti-social atinge certa gravidade e seu sentido original tenha esmaecido.

(...) tive de inventar a expressão "tendência anti-social", para reuni-la com a criança que furta um tostão do bolso de alguém ou que tira alguns bolinhos, a que tem perfeito direito, da despensa. Quis unir isso com as tendências que podem conduzir à delinqüência [...] Trata-se de algo importante, e a vida foi diferente para mim após isso, porque agora sabia o que fazer com meus amigos que me estavam trazendo suas crianças por estas apresentarem uma tendência anti-social em um lar perfeitamente bom. Descobri que antes de os lucros secundários aparecerem, isto não era algo difícil de tratar, mas sim fácil, ainda que não em todos os casos. Acho que isso foi uma contribuição. Não conheço ninguém que estivesse realmente fazendo isso então, e, se houvesse, gostaria de saber. (Winnicott, 1989f, p. 439)

Como o próprio winnicott coloca, sua formulação sobre este tema é completamente original, e para podermos entender o que o conceito de tendência anti-social envolve e como ele se relaciona com sua teoria do amadurecimento pessoal, faz-se necessário um breve resumo sobre a concepção de Winnicott sobre as condições necessárias para que transcorra o desenvolvimento emocional saudável de um indivíduo.

A teoria do Amadurecimento Pessoal de D.W.Winnicott

A teoria do Amadurecimento Pessoal de D.W.Winnicott é categórica ao explicitar a importância do papel do ambiente na formação do indivíduo. Mais especificamente, é no âmbito da relações interpessoais (no início do bebê com a mãe, e posteriormente, se estendendo ao pai, à família, etc.) que o bebê é capacitado a integrar experiências, constituir um psicossoma harmônico a partir da elaboração imaginativa do corpo, viver de modo autêntico e criativo (com base na experiência de onipotência sustentada pela mãe nos estágios mais primitivos da dependência) e tantas outras conquistas e tarefas que se dão nos diferentes estágios do amadurecimento, desde o nascimento até a morte (considerada por Winnicott como a marca derradeira da saúde). Em outras palavras, é imprescindível que exista uma provisão ambiental suficientemente boa para que o desenvolvimento transcorra de forma saudável e íntegra.

Quando tudo corre bem, o indivíduo consegue caminhar de maneira satisfatória numa espécie de “linha” do seu amadurecimento pessoal, e apesar deste processo nunca ser linear, envolvendo conquistas e perdas, existem algumas aquisições necessárias para a conquista de outras, sendo bastante prejudicado aquele indivíduo que não consegue estabelecer suas bases para ser, ou o faz de maneira precária.

Quanto mais imaturo é o indivíduo, maior sua dependência da provisão ambiental, e maior também a gravidade dos danos causados quando o ambiente falha e o traumatiza. Quando há uma falha ambiental abrupta, intolerável para o nível maturacional do indivíduo e que acarreta numa quebra do processo de amadurecimento, dizemos que ocorreu um trauma, uma ruptura na continuidade de ser, que dependendo do estágio do amadurecimento no qual se localiza é responsável pela instauração de uma determinada doença psíquica.

As psicoses se configuram como as doenças emblemáticas de traumas que ocorreram num período bastante precoce da vida do bebê, antes da formação de um Eu integrado e organizado. No outro extremo estariam as neuroses, quando o indivíduo alcança a capacidade de ter relacionamentos interpessoais entre pessoas totais, sofrendo conflitos de ordem instintual, sendo medidos pelo grau de rigidez das defesas pessoais, organizadas para se defrontar com a ansiedade na fantasia da pessoa. A Tendência anti-social se localiza em algum lugar intermediário entre estes dois extremos, quando o trauma ocorre em algum momento após a formação do Eu, de modo que o bebê ou a criança tiveram um início satisfatório que permitiram a integração do self. Por esse motivo, Winnicott utiliza o termo “deprivação”, ao invés de privação, que seria referente aos estágios primitivos.

É importante ressaltar que Winnicott considera como doença não o colapso que muitas vezes a denuncia, mas o tipo e a rigidez das defesas erigidas a partir do trauma. No caso da tendência anti-social, trata-se de defesas erigidas contra as agonias impensáveis, e o sofrimento é descrito por Winnicott como

"um estado de confusão, de desintegração da personalidade, um cair para sempre, uma perda de contato com o corpo, uma desorientação completa, e outros estados dessa natureza" (1968e, p. 77).

O caminho para o tratamento de um distúrbio psíquico de natureza ambiental, seja ele qual for, sempre passa por proporcionar ao indivíduo um ambiente terapêutico, no qual a confiabilidade possa ser restaurada, permitindo assim uma regressão até o ponto de origem do trauma. Somente assim o amadurecimento poderá ser restabelecido e continuar seu curso no sentido da tendência inata à integração. Embora apresentando suas idiossincrasias, a Tendência anti-social se insere nos aspectos gerais aqui apresentados, e é imprescindível que tenhamos essa dimensão teórica tanto para podermos diagnosticá-la como para podermos tratá-la da maneira correta.

 

A tendência anti-social e seu apelo esperançoso

Ainda hoje é bastante comum a correlação da questão da delinqüência com um colapso mais geral da provisão social, como a miséria e as condições de vida adversas. No entanto, já na década de 60 Winnicott nos adverte:

“(...) a tendência anti-social esta inerentemente ligada à privação. Em outras palavras, um fracasso específico é mais importante do que um fracasso social geral. ” (Winnicott, W14/1986b, pág. 82).

O fracasso específico ao qual Winnicott se refere na citação acima diz respeito à falha ambiental ocasionada na relação interpessoal da criança com seus pais.

A falha específica remete a uma relação esta que estava sendo suficientemente boa e, por algum motivo, sofreu uma transformação repentina numa fase do amadurecimento pessoal da criança em que ela já tem idade suficiente para saber o que aconteceu com ela, ou seja, já existe a consolidação de um EU integrado.

Para Winnicott, a tendência anti-social  denota exatamente uma tentativa inconsciente (acting out) da criança em comunicar esta falha ocorrida na medida em que o ambiente recobra a confiabilidade. Por isso  é possível compreender, na manifestação da tendência anti-social, a subjacente expressão da esperança que a criança apresenta em ser compreendida e ajudada.

“ A questão é:que esperança é essa? O que a criança espera fazer? É difícil responder a essa questão. A criança, sem sabe-lo, espera conseguir levar alguém que a ouça a recordar-se do momento de privação ou da fase em que a privação consolidou-se numa realidade inescapável. A esperança é que o menino ou a menina seja capaz de reexperimentar, na relação com a pessoa que está agindo como psicoterapeuta, o intenso sofrimento que precedeu a reação à privação.” (winnicott, 1986b, p. 89-90)

O trabalho de Winnicott com crianças anti-sociais possibilitou-lhe confirmar a importância do ambiente na constituição do indivíduo e mudar o enfoque intrapsíquico que a psicanálise tradicional dava para a questão da delinqüência e da criminalidade em geral para o enfoque interpessoal da psicanálise winnicottiana, consolidando uma teoria totalmente original.

Durante sua reflexão sobre a tendência anti-social, Winnicott não acreditava que sua etiologia pudesse ser explicada nem em termos de fatores externos grosseiros, como os definidos pela psicologia acadêmica, nem por conflitos psíquicos internos, como os definidos pela psicanálise tradicional, que a atribuía à culpa resultante da inevitável ambivalência inconsciente.

No entanto, era difícil entender como em lares onde a provisão ambiental parecia ser suficientemente boa poderia a tendência anti-social se instalar na criança. O desenvolvimento dessa reflexão levou-o a perceber que a falha ambiental que leva à tendência anti-social não era necessariamente grosseira, que poderia ser extremamente sutil e, muitas vezes, passar despercebida por um observador menos atento às sutilezas das relações mais primitivas. Fazia-se necessário um olhar mais minucioso, verificar os detalhes da relação interpessoal do bebê ou da criança com sua mãe ou pai, e tentar identificar aí uma quebra, uma transformação.

Foi assim que Winnicott verificou que tal quebra na confiabilidade do ambiente não estava necessariamente relacionada ao fato da mãe ou a família se tornarem de repente “maus” ou incapazes de cuidar da criança, mas que mesmo mudanças mais sutis poderiam resultar numa vivência traumática pela criança. Uma mudança de humor da mãe pela chegada de um novo filho, ou o fato da mãe ter que se ausentar por um período de tempo demasiado longo para que a criança pudesse manter a confiabilidade inabalada, ou a separação dos pais, são exemplos de “quebras” na continuidade que podem passar desapercebidas a “olho nu”, mas que têm potencial para desencadear uma tendência anti-social, em decorrência da extrema sensibilidade da criança com relação aos cuidados ambientais numa fase ainda primitiva  do amadurecimento pessoal.

A grande especificidade com relação a falha ambiental deflagradora da tendência anti-social é que ela ocorre de maneira abrupta do ponto de vista da criança, numa fase do amadurecimento no qual ela (a criança) já é capaz de identificar a falha como proveniente do ambiente, ou seja, já existe um EU integrado e separado do ambiente e que reconhece que foi lesado por ele. Esta perda do ambiente suficientemente bom foi denominada por Winnicott pelo termo deprivação (deprivation, em inglês), e está sempre presente na raiz da tendência anti-social:

(...) a perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência. (1958c, p.131) [...] é uma característica essencial que o bebê tenha atingido a capacidade de perceber que a causa do desastre reside numa falha ou omissão ambientais. (Ibid., p. 135)

Uma descrição completa da deprivação inclui as condições anteriores ao trauma, o ponto exato do trauma - e do prolongamento da condição traumática - e as condições posteriores a ele. A criança que sofre esse tipo de trauma vive uma agonia impensável. Quando a agonia impensável vivida durante a deprivação consolida-se como numa realidade inescapável, diz Winnicott,

“a criança acaba por tornar-se submissa, inofensiva e sem esperança. Para quem cuida dela isso pode ser muito cômodo, mas para ela significa sofrimento. Mas a criança pode ter a sorte de encontrar um ambiente favorável, por exemplo, a mãe reconhece a falha e a "mima" durante um certo período de tempo, cercando-a de cuidados especiais. Nessas circunstâncias, a criança começa a voltar a confiar que o ambiente possa ser capaz de compreender e acolher o seu problema. Um tal ambiente permite que a esperança renasça, e assim, os atos anti-sociais podem começar a ocorrer para testar a confiabilidade do ambiente. Esses atos anti-sociais nada mais são do que um pedido de socorro, para que alguém reconheça e a ajude a recordar-se "do momento da deprivação ou da fase em que a deprivação consolidou-se numa realidade inescapável" (id.).

A esperança e o sentido do impulso que levam a criança a buscar o estado de coisas que existia antes da deprivação são características essenciais da tendência anti-social e, para que haja cura, devem ser reconhecidas pelo ambiente. Se os sinais de surgimento da tendência anti-social forem desperdiçados por intolerância ou incompreensão, a criança não terá condições de desfazer o medo da agonia impensável ou da confusão que ela viveu antes de se tornar desesperançada, e não poderá retomar o seu amadurecimento.

Através de uma modalidade específica de tratamento, chamada por Winnicott de “Consultas Terapêuticas”, Winnicott procurava chegar ao ponto de deprivação sofrido pela criança através de uma comunicação profunda, por vezes pré-verbal, e a partir daí buscava orientar a família e acompanha-la em sua tarefa de co-terapeuta.

Quanto mais cedo diagnosticada, maiores as chances de cura da tendência anti-social, e invariavelmente o caminho para a mesma é a compreensão e o provimento de cuidados especiais, pelo tempo que a criança demandar, e jamais a condenação e a retaliação. Quando bem instruída a respeito, a própria família pode realizar a terapia necessária, evitando que a tendência anti-social possa se desenvolver e se cristalizar em delinqüência, que já é uma defesa anti-social organizada. Essa descoberta é de importância fundamental para se pensar as questões de prevenção da delinqüência.

Uma das grandes dificuldades no tratamento da tendência anti-social é justamente garantir que haja por parte das pessoas que cuidam da criança uma manutenção desses cuidados especiais pelo período demandado pela mesma, e para tanto tais cuidadores precisam apresentar eles próprios uma boa saúde psíquica, assim como uma boa compreensão dos fatos que envolvem a tendência anti-social, para suportarem situações adversas e “sobreviverem” à crise pela qual a criança está precisando passar, sem que haja retaliação.

O fato é que a tendência anti-social, quando se manifesta veementemente, tende a suscitar no ambiente uma reação, na maioria das vezes moralista  ou repreensiva, especialmente nos casos mais graves e de difícil manejo. Nos casos de crianças institucionalizadas, quando não existe uma família que esteja disposta e/ou capacitada a oferecer cuidados e compreensão, a situação é ainda mais crítica, e o treinamento de profissionais capacitados é extremamente complexo.

“[...]Hoje, como sempre, a questão prática é como manter um ambiente que seja suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando os encontram.” (Privação e Delinqüência, Introdução por Clare Winnicott, p. XV-XVI)

 

Manifestações clínicas da Tendência anti-social e o elemento dissociativo:

A tendência anti-social possui essencialmente dois aspectos que acarretam em diferentes manifestações clínicas:

O primeiro aspecto remete a um período mais precoce do desenvolvimento e diz respeito à interação da criança pequena com a mãe. Este aspecto decorre do fato da mãe ter falhado numa tarefa específica: a de continuar capacitando a criança a encontrar objetos de forma criativa, sentindo-se a criança impossibilitada para tal e percebendo a proveniência desta falha, que pode ter sido ocasionada por uma ausência demasiadamente prolongada da mãe. Para ela, é como se lhe tivesse sido roubada a possibilidade de usar o mundo de forma criativa. Por isso, quando ela encontra um objeto qualquer, ela o rouba por compulsão. Mas o verdadeiro sentido do roubo permanece encoberto, e é comum a criança se sentir louca e confusa devido a esse não entendimento, especialmente quando é inquirida  a respeito. A criança de fato não busca por um objeto em específico, mas pela capacidade de encontrar. A manifestação clínica mais comum deste aspecto da tendência anti-social é o roubo.

Já o segundo aspecto se dá num estágio mais desenvolvido e diz respeito à relação do menino (ou do aspecto masculino presente na menina) com o pai, e se relaciona à falha da tarefa de integrar impulsos agressivos e destrutivos com os amorosos. Para que tal conquista seja alcançada, é necessário que a criança possa contar com a figura de um pai ou o correspondente (alguma autoridade, alguém em quem a mãe possa confiar) que lhe permita perceber que é seguro exercitar sua agressividade em termos de fantasia, e que inclusive esta agressividade é inerente ao amar. A criança que é bem sucedida nesta tarefa integrativa busca organizar sua vida de modo construtivo, tentando afastar a possibilidade de danificar algo de que gosta. Mas para conseguir isso a criança necessita de um ambiente que seja “indestrutível”, coeso, seguro de um certo modo. Quando esta confiança no ambiente fica abalada, por uma separação dos pais, a morte do pai, uma transformação nas relações familiares, etc, ocorre uma deprivação, fazendo com que as idéias e os impulsos agressivos antes respaldados no quadro de referência familiar se tornem inseguros. Em decorrência disto, a criança se retrai na sua espontaneidade por medo de destruir na realidade aquilo que ama. Neste caso, assim que a criança recobra a confiança no ambiente e, com ela, a esperança de ser ajudada, sente a necessidade de se redescobrir, e isso implica na redescoberta de sua agressividade represada. O pedido de socorro vem travestido, neste caso, por uma explosão de agressão, que poderá de fato acarretar em danos concretos, como a quebra de uma vidraça ou mesmo a agressão física a outrém.

Outro aspecto importante relativo à tendência anti-social é que crianças que roubam ou que praticam algum ato destrutivo, geralmente, quando inquiridas, negam tê-los cometido, e isso aparenta ser feito por elas sem o menor sinal de culpa ou responsabilidade. Isto pode parecer uma cínica mentira para quem vê de fora, mas para ela é totalmente verdadeiro. Isso porque, como Winnicott percebeu em sua clínica, as crianças anti-sociais apresentam, regularmente, uma dissociação na personalidade.

"Dissociação é um termo que descreve uma condição da personalidade relativamente bem desenvolvida, na qual há uma excessiva falta de comunicação entre os diversos elementos" (1988, p.159).

Isto significa que o aspecto do self que cometeu o ato anti-social está dissociado da personalidade total. Não existe, portanto, uma comunicação entre os dois. Se houver uma pressão para que ela confesse o delito, inclusive mediante apresentação de provas, provavelmente ela o fará, mas isso, diz Winnicott, lhe custará "deixar essa área de ser verdadeira e transferir-se para uma outra espécie de integração na área intelectual do funcionamento do ego" (1966c, p. 263). Com a confissão, haverá uma falsa integração, que se dará somente a nível intelectual, a criança será "capaz de saber, compreender e recordar [...]. A culpa é agora admitida, mas não é sentida" (id.). Do ponto de vista externo, isto pode parecer satisfatório e até cômoda para os que cuidam, mas a criança não foi compreendida e nem ajudada. Tais  atos não podem ser confessados de forma genuína pela criança porque esta agiu sob compulsão e com a parte da personalidade que está dissociada. A compulsão está ligada à esperança que a criança tem de ter reconhecido o débito do mundo para com ela, débito este que foi gerado pelo ambiente falho, e dele se espera ressarcimento.

Neste ponto faz-se importante ressaltar que o fato da criança que cometeu um ato anti-social não estar consciente do seu “delito” não significa que essa inconsciência seja fruto da repressão. Pois aqui não se trata de inconsciente reprimido, mas de dissociação, e uma parte do self não se comunica com a outra, estão desintegradas. A negação do ato anti-social, pela criança, significa que ela está aflita e pedindo socorro, necessitando  de alguém que não a julgue nem a puna, e que a compreenda e a ajude nesse estágio em que ela está sofrendo e é ainda uma pré-delinqüente.

Conclusão:

 

A descoberta de Winnicott de que os atos mais graves de delinqüência fazem parte da mesma problemática de um bebê que dá um trabalho excessivo ou de uma criança que furta um lápis na escola abre grandes perspectivas para pensarmos a respeito da prevenção da delinqüência. Abrangidos pelo mesmo termo “tendência anti-social”, os atos anti-sociais surgem na sua versão mais branda num período ainda precoce do desenvolvimento do indivíduo, de maneiras previsíveis e passíveis de tratamento, mas quando não tratados adequadamente vão adquirindo o grau da defesa anti-social estruturada na forma de delinqüência.

Outra importante descoberta de Winnicott referente à tendência anti-social é sua conexão com a esperança:   é nos momentos de maior esperança que a criança “deprivada” (que sofreu deprivação) mais mobiliza seu ambiente, esperando que este reconheça e compense o dano causado. A criança, com esse comportamento, não tem a consciência do que está de fato procurando atingir, sendo o acting-out o meio encontrado pela mesma para comunicar o seu sentimento de ter sido lesada.

Esses sinais de tendência anti-social expressos pelo acting-out podem aparecer já muito precocemente, a partir do momento em que o EU se integra numa unidade. Pode já estar presente no bebê que causa um incômodo que começa a parecer excessivo para a mãe, e se esta reconhece sua falha e torna-se uma “terapeuta”, proporcionando uma fase de cuidados especiais para o seu bebê, na qual atende suas reivindicações e permite suas regressões necessárias, muito provavelmente esse "tratamento" feito por ela terá sucesso. E assim, igualmente, para todas as idades durante a infância.

Para o tratamento da tendência anti-social é imprescindível que se reconheça o valor positivo que o acting-out tem na cura da mesma e que se tome o sintoma expresso no ato anti-social como a comunicação de uma falha específica e um pedido de ajuda .

Quando uma criança sofre deprivação e o ambiente reconhece a falha e passa a ressarcir, com cuidados especiais, a dívida para com ela, a chance dela ser "curada" é muito grande, especialmente antes de que haja benefícios secundários. Contrariamente a isso, se o ambiente não reconhece o dano causado, isso pode levar a criança a desenvolver uma delinqüência que, com os ganhos secundários, afasta-a cada vez mais do trauma original, podendo tornar impossibilitada a sua cura.

A cura, nestes casos, não tem a ver com a interpretação do inconsciente reprimido, ou seja, de nada adianta, para a criança, saber que sofreu deprivação, numa história contada por outra pessoa. Isto seria uma apreensão meramente teórica, o que pode ser muito simples para uma criança inteligente, mas que não altera em nada o sentimento de ter sido lesada que ela carrega consigo.

O verdadeiro valor terapêutico está na descoberta da falha ambiental pela criança através da possibilidade de um ambiente terapêutico (seja o ambiente familiar ou o setting analítico) que esteja disposto a proporcionar os cuidados que permitam restaurar o clima de confiabilidade. Só assim a tendência anti-social poderá se manifestar, como que para testar  esta confiabilidade restaurada. Este é o caminho da cura. Neste sentido que podemos dizer que a tendência anti-social é a manifestação de esperança; esperança com relação a ser compreendido, poder comunicar a falha e conseguir as provisões de que necessita para o restabelecimento do processo de amadurecimento saudável.

Infelizmente, existem um grande número de casos anti-sociais mais graves, casos em que o distúrbio já se estabeleceu e que dizem respeito, em geral, àqueles indivíduos que não contam com um ambiente que se disponha a ser terapêutico. Nestes casos, Winnicott é rigoroso ao afirmar que a cura torna-se praticamente inatingível. Mas nos casos em que a criança vive em um ambiente relativamente bom (chamado também de “ambiente expectável médio), ou seja, quando existe uma família ou uma instituição dispostas a oferecerem cuidados especiais, enquanto forem necessários, as chances de restabelecimento são muito maiores.

Capacitar os pais a criarem um ambiente terapêutico para os filhos não só vai de encontro com o tipo de demanda encontrada por Winnicott na época, a qual, aliás, caracteriza o serviço público ainda mais intensamente nos dias atuais: um grande número de pessoas procurando ajuda, poucos profissionais, famílias que não têm condições de arcar com os custos de um tratamento mais prolongado, etc; como também fornece aos pais a chance deles próprios cuidarem dos filhos e repararem o dano causado , o que é de extrema importância para muitos pais, favorecendo um enriquecimento geral da situação.

Referências bibliográficas:


Winnicott, Donald W. 1958c [1856]: “A tendência anti-social”, in Winnicott 1984a Privação e delinqüência.


––– 1971vc: “Introdução (da parte três)”, in Winnicott 1971b: Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil.

––– 1963c: “Os doentes mentais na prática clínica”, in Winnicott 1965b: O ambiente e os processos de maturação .


___ 1968e: “A delinqüência como sinal de esperança”, in Winnicott 1986b: Tudo Começa em Casa.


––– 1984i [1961]: “Variedades de psicoterapia”, in Winnicott 1984 a: Privação e delinqüência.


––– 1965ve: “A psicoterapia de distúrbios de caráter”, in Winnicott 1984a: Privação e delinqüência.

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